terça-feira, 26 de março de 2019

O valor da inscrição

O valor da inscrição
No Festival de Poesia de Lisboa
Consiste em cinquenta euros, uma promoção,
Quase duzentos e vinte contos de réis
Tão salgado quanto o mar português
Inscrever-me num concurso público
É mais barato, por sua vez,
E seria um barato único
Se fossem abertas as vagas
À prefeitura de Pasárgada
Para o cargo de poeta-chanceler
Cinco versos à toa
Da letra A à E
Como múltipla escolha
Mas, já que isso não se trata da vida como ela é,
A realidade é outra,
Não está pro meu ascendente em Peixes a maré
Nem o Festival de Poesia de Lisboa.

segunda-feira, 25 de março de 2019

A memória

A memória não se recupera
Pela retrospectiva do ano
Transmitida dos estúdios da Anhanguera
Da Barra Funda ou do Jardim Botânico
A memória não se resgata
Através de regressões
E digressões baratas
São outras recordações
A memória não se readquire
Por quem não se lembra
Do seu papel neste filme
Matou a família e o cinema
A memória não se retoma
Só pela psicografia
Ou por biografias em coma
A memória mora escondida
Nos museus em chamas
Nos corações-arquivos
Fotogramas, livros, fonogramas:
Nos estragos vivos.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Animal de intimação

Domesticando a ansiedade
Animal de intimação
Às vezes, proatividade
Noutras, precipitação
Substanciais milímetros
Por colossais metros quadrados
Pensando noutros perímetros
Com ares mais desurbanizados
Quero ver bois, galinhas d'angola
Vagalumes, vacas, cavalos e sapos
Acordando apenas na hora
Em que acabar o cansaço.

quarta-feira, 20 de março de 2019

Tudo é um sintoma

Tudo é um sintoma
Uma pessoa no pensamento
Que logo depois se reencontra
No ônibus ou num cruzamento
Uma interjeição
Um bordão do espírito do tempo
Na fila do pão
Ou do pagamento
Um verso cantado no dial
Um sincero oferecimento no ar
Uma frase solta no canal
Escolha do zapear
Das ondas do rádio
Uma nota encomendada de jornal
Um slogan publicitário
Um entreouvido casual
Uma ligação, uma chama
Uma espionagem vizinha
Pela fresta da varanda
Uma epifania escorregadia.
Tudo é um sintoma
Uma pessoa no pensamento
Que logo depois se reencontra
No ônibus ou num cruzamento
Uma interjeição
Um bordão do espírito do tempo
Na fila do pão
Ou do pagamento
Um verso cantado no dial
Um sincero oferecimento no ar
Uma frase solta no canal
Escolha do zapear
Das ondas do rádio
Uma nota encomendada de jornal
Um slogan publicitário
Um entreouvido casual
Uma ligação, uma chama
Uma espionagem vizinha
Pela fresta da varanda
Uma epifania escorregadia.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Uma coisa só

O foco da alma
É o destino
Em qualquer estrada
Vou seguindo

Basta de cópia
Do pretérito
Sem tapa nas costas
Não vem um presente velho

Música, filme, palavra
Livro, quadro e idioma
Se não me marcam
O coração, não funcionam

Sombra e sol
Meia-luz e penumbra
São uma coisa só
Embrião e tumba.

domingo, 10 de março de 2019

Toldos rasgados

Toldos rasgados
Das penúltimas janelas
Doidos varridos
Para debaixo do topete
Todos os passados
Exibidos na passarela
Doídos vazios
Papo cabeça de pele.

sábado, 2 de março de 2019

Esta noite longa

Quero que esta noite longa passe
E leve embora a hipocrisia
Dos cidadãos de bem
Nunca foi tão notória a luta de classes
Nem é necessário ter tanta sabedoria
Para perceber quem detém quem
A elite quer que a gente trabalhe
E morra antes da aposentadoria
A alforria tem que ser aqui e não no além
Quero que esta noite longa acabe
Abrindo as cortinas para um novo dia
Quantas janelas você tem?

Dispenso

Dispenso
O topo da montanha
O degrau mais alto do pódio
O discurso de quem ganha
Desconheço o que posso
E diz: penso
Na minha cabeça a coroa
No meu coração o ódio
Antes que se corroa
Em mim a coragem que coço

Eu não vim da capital
Do Espírito Santo
Tampouco torço na geral
Para o rubro-negro time baiano

A minha maior vitória
É o prolongamento da resistência
Diante da idiotice em voga
O que me consola é o que se dispensa