Ser gentil e aberto
Exige beijo e coragem
Deus não é descoberto
No ensejo da passagem
Ninguém está certo
No meio ou além da paisagem
Por mais poético e belo
Que seja o fim da tarde
Na saída da cela
No aspecto da minha cara
Na abertura da janela
Da consciência obscura e clara
Na figura da minha face
Cansada da resistência, com rugas
Não foram dias fáceis
Com doçuras, disfarces, ofensas e fugas
Contudo agora
Nas manhãs sadias
As nuvens carregadas foram embora
Madrugada já é bom dia
Ser receptivo e empático
Requer abraço e audácia
Não é tão prático
Quanto ir à farmácia
Ninguém está errado
Na bruma da massa
O corpo é um embrulho ou um carro
E o copo, um mergulho ou uma falácia
Seja como for, tudo é amor
Entre filmes e discos
Haja espera para este depois
Em que serei entendido
O meu rio interior
Não é uma área de risco
É uma réplica límpida
Entre crimes e livros
Entreouvido é poesia
Deus não está perto
Apenas no desejo do milagre
Deus está no piso, no peso e no teto
Fora da igreja, em diversos lugares
Até dentro de si mesmo, num verso
No brejo, no beco, na fortaleza
A fé é um gesto de coragem
Um credo sem medo da gentileza.
Pedra pulsante, viajante
Alma corpórea, grossa
Agora não é só um instante
Memórias, às vezes paranoias
Amanhã talvez venha antes
Conexão durante a ioga
Televisão edificante
Sem anunciantes, jogando o lixo fora
Trocando o nicho e as lâmpadas
Que duram bem menos
Do que as de outrora
Regando as plantas
Descarregando os venenos
Levezas em voga são esperanças
Lição de certezas vagas
Relógio liso, lento, ameno
E submisso como um leão
No fogão aceso a leiteira afogada
De água da torneira para fazer o mate
Sem esquecer as gotas e o limão
No amargor da realidade
Amar o gol que espanta
Pedir logo o galão de vinte litros
E virar o lado do disco lá pelas tantas
Para uma novíssima ideia
Há diversos delírios e livros
De versos, receitas e mantras
Reuniões literárias submersas
De poetas que não são lidos
Pulsa outro perfil da pedra
E você pensa que sinto
Graça naquelas janelas
Sagradas como brinquedos
Da velha brinquedoteca
Pedra comovente e latejante
Lances de audazes medos
Nuvem pétrea, lúcido pane
Ao vento, cavalares segredos
Lembretes de puro sangue
Na parede, cegos caranguejos
Brilhantes mágoas no mangue
E você sente que penso
Mas não como antigamente
Travesseiros tensos
Sem cabeças, ofuscantes lentes
Talvez na fuga apareça antes
Pedra pulsante, alma corpórea
Diamante distante, cá dentro
E você sabe que rolam
Horas e demoras diante do tempo.
Agora que bateu
A lembrança do esqueleto
Na naftalina do armário
Debaixo do couro
Eu me acho mais eu do que outro
Agora que bateu
A onda que balança o leito
Dentro do aquário
Está fervendo o tesouro
Eu me vejo mais eu do que outro
Agora que bateu
A vontade do aumento do teto
No meio do itinerário
Sem despejo de onde moro
Eu sou mais eu do que outro
Agora que bateu
A saudade da criança ou do leitor
Aparece um novo abecedário
Aprendizado duradouro, garoto
Eu estou mais eu do que outro
Agora que bateu
A fome de um prato feito
Após a longa noite, está claro
Que nem toda água limpa tem cloro
Eu me noto mais eu do que outro
Agora que bateu
O coração corajoso na expansão do peito
Do tabuleiro do jogo, o esquema diário
Das regras rui o velho escritório
Eu me escrevo mais eu do que outro
Agora que bateu
A claquete no estúdio inteiro
Não é mais ficção, é documentário
Do que sou, quando rio e choro
Eu atuo mais eu do que outro.