sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Zoom


Você se personaliza nalgo 

Até um dia perceber 

Que a coisa se singularizou em você

Negócio de filtro é fogo alto

Cadê o lixo e o isqueiro, cadê?


Desapego do que me possui

Incêndio do que me polui

Em prol do silêncio, do sol

Intrauterino, só

Aquela voz sussurrante


De quase volume nenhum

Que se ouve após ou no instante 

Embora distante, hoje há zoom

O inferno é frio, indiferente

E o céu, receptivo, quente


Eu já esperei tanto tempo 

Que quero agora, o mistério

É que rola noutro momento

O cristianismo austero

Deriva de Paulo de Tarso


Em vez de Jesus Cristo

Com a arte também me salvo

Na escuridão se esconde a luz

Está tudo escrito numa lógica 

Oculta, no coração, na língua da luta


Está pendurada a sacola ecológica 

Na maçaneta da porta 

E os itens, nas letras da lista 

Ou nas labaredas da horta

Em alguma coisa você se especializa.



terça-feira, 15 de outubro de 2024

Não escrevo com as mãos


Não escrevo com as mãos

Exalo a paisagem

No exílio do meu feudo

Pelo fim das despesas da viagem

Fico aqui mesmo na estação 

Ah, encareceu demais a passagem


A leveza virou um peso 

Um tipo de lavagem

Deixa o coração perdido 

Não escrevo com as mãos 

Quando não entendo

A extensão de certos momentos


Eu me rendo e me entedio

A intuição tem ração

Para o filho, parceiro, tio

Sobrinho, primo e irmão 

Para me lembrar vulnerável 

Humildemente bravio


A despeito do tempo volátil 

Prendo as mãos no guidão 

E dou um grande salto 

Com a arte não morro de perfeição

Cada manhã traz algo

Luminoso aos sonhos sonolentos


Deixo o ar chegar nos pulmões

Assim como os pensamentos 

Perpassam a cabeça na queda

As águas do rio sedento 

Correm pelas pedras

Descem a serra rumo ao mar


Os livros de sangue

Transitam pelas veias

Em transe, andei no ar

Nadei no mangue

E atravessei a fronteira

Tantas vezes pelo enfeite


Do terror, yin e yang 

No teor do bilhete 

Que, enfim, voltei a morar

Em mim, neste lugar

Eu me levo pelo vento

Sempre que leio e viro a página


Na praça do descobrimento

Loucura, lucidez e lágrimas 

Não escrevo com a semântica 

Um dia longevo por vez

Sete tardes por semana

Trinta noites por mês


Não escrevo com a lâmpada 

Espero vir a visão

Eu nutro saudades 

Ao sair de casa, da velha casca 

Sei que já está tarde

Jamais se atrasa a própria revolução


Não escrevo com as mãos

Na redação, acontecimentos 

Erros, reconhecimentos e atritos

A instituição tem corrosão 

Talvez seja a paz o vazio 

Tudo é enfrentamento 


Para me recordar frágil 

Grosseiramente sutil

Sangro no muro flácido 

E mantenho as mãos na ferida

A montanha no alto, dentro, ao lado

É do tamanho da vida.



sábado, 12 de outubro de 2024

O dia da criança


Eu era mais antigo 

Nos tempos idos

Agora estou mais jovem

Do que em setenta e nove

Eu era bem mais idoso


Antes de saber de ouvido 

Que ser inaudito e novo

É um estado de espírito

Estrelas sobre a estrada 

Estreita e cheia de poeira


Chovem tantas charadas

Não se tampa só com peneira 

Várias ondas fingem ignorar 

A chegada da maré 

Tão vasta que vai erguer


Todos os navios do mar

As pessoas transformaram 

O mundo inteiro num inferno 

Falta a mudança na casa

Individual, no porão interno


Às vezes não basta alguém 

Saber o significado das coisas

É significativo saber também 

O que não significam as coisas

A perfeição não mora aqui


E a excelência se esconde

Não muito longe de mim

É que ela esquece seu nome

O passado é um sonho

E o noticiário, um pesadelo


Eu acordo, me assombro

E me abordo no espelho

O pretérito é uma vertigem 

Quando era mais velho

Nos dias de hoje, a origem


E o destino são o elo

Há quem esteja mais presente 

Do que aqueles que estão 

Comigo diariamente 

Ser ou descer, eis a questão


Para quem é leitor,

Telespectador ou ouvinte,

Chega de saudade, acabou

O século vinte

É crucial, é necessário


O acolhimento de despedidas

Caso contrário 

Tudo pela metade finda

As poetisas e os poetas

Têm que ser pessoas médias


Nada de deusas ou divos

Nem comércio de livros

O otimista e o pessimista

Cometem falhas

Mas não padece o otimista 


De forma precipitada

Eu vivia morto

Em tempos remotos

Estou mais moço nos dias atuais

Do que anos atrás. 



quarta-feira, 9 de outubro de 2024

É que antes eu não tinha noção


Antigamente não havia a noção 

E o futuro já sabia

Não pode a Constituição 

Ser pautada pela Bíblia

A poesia é a radiografia do espírito

Daquilo que me registra 

Através do que existo

Nem o atraso hesita

As tardes eram mais longas

Futebolzinho descalço


A bola era a minha dona

Pique-tá, pique-esconde, pique-alto

Sim, as tardes sabiam ser longas

Bolha na sola do pé 

Melhor brincar na sombra

Groselha ganha no sacolé

Na piscina, no salão de festas

Corrida de chapinha no peteleco

E também nos pedais da bicicleta

Na quadra, entre os prédios 


Portão vira gol e rua, campo

Saudosa infância comum

Na Mululo da Veiga, meu canto

Número oitenta e um

As fachadas não são mais iguais 

E a minha infância passeia

Feliz e veloz por ali, nos quintais

Dos avós, no play do três meia meia

Ao lembrar assim, ninguém está no céu

Gosto de recordar quando quero


Natação com tio Robson e tio Joel

Escolinha de futebol do tio Bolero, 

João Brasil, Fonseca

Cardeal Mazarino, Zé Garoto

Número vinte, eu sou quem me rodeia

Sou o mesmo, sou outro

Sou o menino, sou o seguinte 

Era mágica a realidade 

Agora os dias são tristes

Sinais da maturidade


Picolé de uva ou de limão

Futebol na chuva, no asfalto

Naquelas eternas tardes de verão 

Dos segundos arrastados

Arrasadora infância comum

Na Mululo da Veiga

Número oitenta e um

Pão com manteiga

O cheiro geral de doce

Na casa de doces da General Castrioto


Babava diante das balas e demais doces 

Diamantes para um garoto

Perto e distante da Mululo da Veiga 

Os minutos eram soltos

E a solidão, uma companhia meiga

Em mil novecentos e oitenta e oito

Mineirinho no gargalo

Noutros milênios, o tempo

Era mais contemplável 

Atualmente eu quase não contemplo


Aos berros no meio do estrondo

Assim que entro nesta terra

Sou velho o bastante para o abandono

A paz vale menos do que a guerra 

Entre a verdadeira intuição 

E o medo inexplicável 

Não tinha nenhuma suspeição

Parecia ser mais fácil 

Cansaço da normose

É um hábito ser excêntrico


Basta uma dose

Do silêncio ao incêndio

O odor alucinante de doce

É um gatilho autêntico

Como se as horas fossem

De um tempo mais lento

É que antes eu não tinha noção 

Nenhuma, não sabia de nada

Outrora, o gol era no portão 

E as cadeiras, na calçada.